As relações existentes entre a família botânica das palmeiras (Arecaceae) e os povos da floresta são muito antigas e propiciaram a geração de um corpo cumulativo de conhecimentos a respeito das propriedades, multiplicidade de usos e produtos econômicos das diferentes espécies deste grupo.
À parte da enorme importância que as arecáceas têm para o bem-viver de diversas comunidades pelo mundo afora, fornecendo alimento, materiais de construção, material para a confecção de roupas e acessórios, remédios e combustível, podemos comprovar com os nossos próprios sentidos como as palmeiras protagonizam seu estrelato nas comunidades tradicionais da região amazônica. Os telhados cobertos de palha, a parede e o assoalho das casas de estipe* (como a clássica paxiúba) e os deliciosos óleos e vinhos (sucos, bebidas não fermentadas) extraídos dos frutos, são alguns dos clássicos usos que as palmeiras têm neste universo chamado Amazônia!
Estes saberes ancestrais que, ora se perpetuam, ora se perdem no espaço-tempo, também são evidenciados através de diversos estudos, como os etnobotânicos, que auxiliam no registro das plantas utilizadas por um povo e colaboram, acima de tudo, para conter a perda de conhecimentos locais, comumente transmitidos através da oralidade.
As Arecaceae são características das regiões tropicais e subtropicais do mundo e exibem uma incrível variação geográfica na riqueza de espécies e formas de vida, além de um rico registro fóssil. No estado do Acre, na região do alto Rio Juruá e Serra do Divisor, sua majestosidade é tanta que estão representadas por 70% do total de espécies de palmeiras que ocorrem na Amazônia Ocidental, sendo considerada uma das regiões mais ricas para a família (1).
As florestas abertas com palmeiras configuram um tipo de cobertura vegetal predominante no estado, ocorrendo de forma quase homogênea ou associadas com manchas de floresta densa ou com manchas de floresta com bambu, tanto em locais de terra firme como em áreas aluviais. No sentido ecológico, as “palheiras”, como são comumente conhecidas pela população local, são excelentes indicadores dos vários microhabitats existentes na floresta amazônica, pois há espécies que preferem crescer em terrenos mais elevados, bem drenados, enquanto outras preferem os fundos de vale, os baixios e as vertentes (1).
Entre os seringueiros do alto Juruá, as “palheiras” diferenciam-se em grupos, cuja definição está baseada em critérios que incluem a presença de espinhos, a morfologia das palhas, a morfologia dos frutos e, por fim, o grupo de maior destaque, que é o das palmeiras utilizadas para o preparo dos “vinhos”2, como o açaí, buriti, bacaba e o patoá, a nossa PANC de hoje!
O patoá, patuá ou patauá (Oenocarpus bataua Mart.) é uma palmeira com ocorrência em toda região Amazônica, da qual se utilizam as folhas, o estipe, o palmito, a inflorescência, os frutos (polpa e sementes) e as raízes.
As folhas (palhas) são úteis para a cobertura de casas e confecção de instrumentos de caça, corda e tecelagem, bem como para a confecção de cestarias (folhas jovens); junto com as inflorescências, são utilizadas para a fabricação de vassouras e objetos decorativos (3,4). O estipe serve para fazer vigas, pisos, paredes, pontes e hortas, além de fornecerem tapurus, que são coleópteros que se desenvolvem nos troncos envelhecidos e servem de alimento, principalmente aos indígenas (3). O palmito é saboreado através de saladas ou fresco e, em conjunto com as raízes, produz um extrato utilizado para o tratamento de hepatite, febre e malária; as raízes também têm aplicação no combate à febre amarela e doenças pulmonares (3, 4). Dos frutos se extrai remédio para malária, dor de estômago e afecções do trato respiratório; assim como um óleo, semelhante ao azeite de oliva, muito apreciado para uso na culinária, medicina (como laxante, tuberculose, asma e outros problemas respiratórios) e cosmética (hidratante e tônico capilar); as sementes também são úteis para tratar diarréia (3,4); contudo, é através do “vinho” de suas polpas que o patoá é mais comumente degustado, sendo considerado o “nescau” da floresta no Acre, por conta da sua coloração, semelhante ao achocolatado (1). Ademais destes modos de consumo, os ribeirinhos e extrativistas preparam um pirão com o vinho, com o qual costumam comer carne de caça, principal fonte de proteína destas populações. Os animais como anta, veado, macaco, porquinho, paca, tatu, cotia e aves de grande porte, como tucano, arara e jacu, também apreciam muito o patuá que, na contramão, serve aos caçadores de local de espera para o abate (1, 5).
Os patoazeiros crescem em locais úmidos e sombreados, porém quando adultos gostam de luminosidade, podendo atingir até 25 metros de altura e folhas de mais 10 metros. Seus locais de ocorrência são Peru, Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela e, no Brasil, nos estados do Acre, Amazonas, Pará, Rondônia e em uma parte da região centro-oeste (3).
No Acre, a época de frutificação do patauazeiro é mais intensa nos meses de dezembro a março, período das chuvas, mas também encontramos frutos de patauá nos meses de julho a setembro. Os frutos demoram entre 10 e 14 meses para se desenvolverem e amadurecerem, sendo que o indivíduo adulto frutifica por volta de 8 a 15 anos de idade (3).
No município de Cruzeiro do Sul, encontramos pontos de venda de “vinho” de patoá no mercado municipal e também nas ruas, de vendedores ambulantes. Nas regiões dos ramais, também é possível comprar a bebida de pessoas que “se atrepam” no patoazeiro e preparam o vinho, geralmente para ser apreciado em família. Apesar disto, alguns moradores do ramal São Francisco, local onde resido, relatam uma diminuição na frequência do vinho de patoá, que é considerado “reimoso”** por alguns.
Ainda lembro dos meus primeiros meses na cidade de Cruzeiro do Sul, quando conheci o patuá e me encantei por ele! Tomava feito vitamina, com banana, açúcar gramixó (mascavo) e amendoim! É um baita alimento e, para dar um plus também pode ser acompanhado da tradicional farinha de cruzeiro (farinha de mandioca), sempre presente nos pratos acreanos!
Apesar de seu óleo já ter sido muito visado como substituto do azeite de oliva, principalmente, durante a Segunda Guerra Mundial (levando o Brasil a exportar toneladas de óleo por ano e dizimar muitos patoazais em virtude da exploração não sustentável), não é fácil encontrar, no presente, o óleo para comércio (3). No município de Mâncio Lima, tive a oportunidade de conhecer o senhor Manoel Bezerra e sua cooperativa, que produz este e mais óleos de arecáceas (como açaí e buriti), assim como sabonetes naturais.
Entre algumas denominações de povos indígenas do Acre, o patoázeiro é conhecido como “isã”, pelos Noke Koi (Katukina) (5) e outros grupos Pano (como os Nukini) e “sheyaki” entre os Ashaninka (7) e, uma curiosidade muito legal, que envolve a ligação desta planta com o povo Nukini, do Vale do Juruá, é que o patoá dá nome a um determinado clã desta etnia, chamado “Itsãbakëvu”, traduzido como “gente do Patoá”. Segundo a narrativa do meu amigo Txane Pistyani Nukini, baseado em suas próprias pesquisas com idosos da Terra Indígena Nukini, os inuvakevu ou “povo da onça”, como se autodenominam, receberam da Mãe Onça o patoá para que pudessem se alimentar e refugiar. No tempo das correrias, as populações indígenas buscaram sobreviver ao massacre violento que assombrava seus territórios de origem, dispersando-se pela floresta à procura de locais seguros, onde não pudessem ser avistados. Um destes locais era exatamente o pé de patoá, onde se atrepavam para se esconder entre as palheiras, passando desapercebidos pelos inimigos. A planta também é exaltada em cantos que trazem a força de seu espírito protetor, que abriga e nutre a sua gente. Segundo Txane, “assim, como alimento, misturado com pimenta, [o patoá] dá o molho, que revigora o corpo e dá comida saborosa!”.
Na seção de receitas, compartilho com os seguidores do “Mato no Prato”, a transcrição da receita de vinho de patoá encontrada no capítulo “Cozinhar e comer”, do Livro “Enciclopédia da Floresta. O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações” (8) e a receita Nukini de molho de pimenta com patoá, fornecida por Txane Pistyani Nukini, morador da aldeia República, da Terra Indígena Nukini, localizada no Rio Moa, município de Mâncio Lima, Acre. O patoá é uma iguaria da floresta e, como se diz nas bandas daqui, “pode arroxá!”
*O estipe é o termo usado para caules de palmeiras
** A reima é uma qualidade do alimento que os torna perigosos de se comer, principalmente em situações de fragilidade como gravidez, picada de cobra, esporada de arraia, golpes e doenças (6).
(1) Daly, D.C. & Silveira, M. 2008. Ambientes físicos e coberturas vegetais do Acre. Em: D.C. Daly & M. Silveira. Primeiro catálogo da flora do Acre, Brasil. Rio Branco, AC: EDUFAC. Pp. 36-63.
(2) Emperaire, L. 2002. Entre paus, palheiras e cipós. Em: M.C. Cunha e M.B Almeida. (orgs.). Enciclopédia da floresta. O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras. Pp: 389-417.
(3) Center for International Forestry Research (CIFOR). Disponível em: https://www.cifor.org/publications/pdf_files/Books/BShanley1001/203_208.pdf. Acesso em 20 janeiro 2021.
(4) Balslev, H.; Grandez, C.; Zambrana, N. Y. P.; Moller, A. L. & Hansen, S. L. 2008. Palmas (Arecaceae) útiles en los alrededores de Iquitos, Amazonía Peruana. Rev. peru. biol. 15 (supl. 1): 121- 132. Disponível em: https://www.cifor.org/publications/pdf_files/Books/BShanley1001/203_208.pdf. Acesso em 20 janeiro 2021.
(5) Martini, A. 2003. Levantamento Participativo de Recursos Naturais na TI Katukina do Campinas. Rio Branco, 2003. mimeo.
(6) Cunha, M. C. C. & Franco, M. C. P. 2002. Glossário. Em: M. C. Cunha e M. B Almeida. (orgs.). Enciclopédia da floresta. O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras. Pp: 677-681.
(7) Mendes, M. K. 2002. O clima, o tempo e os calendários Ashaninkas. Em: M. C. Cunha e M. B Almeida. (orgs.). Enciclopédia da floresta. O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras. Pp: 179-220.
(8) Araújo, G. J.; Mendes, M. K.; Franco, M. C. P.; Lima, E. C.; Cunha, M. C.; Araújo, M. B.; Wolff, C. S. 2002. Cozinhar e comer. Em: Cunha, M. C. e Almeida, M. B. (orgs.). Enciclopédia da floresta. O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações. São Paulo: Companhia das Letras. Pp: 359-379.
Nicoll Andrea Gonzalez Escobar
Nome Científico:
Oenocarpus bataua Mart.
Nome Popular:
Patoá, patuá ou patauá.
Partes utilizadas:
Para a alimentação são utilizadas o palmito e a polpa dos frutos. No entanto, a planta tem outras utilidades advindas de suas folhas, estipe, palmito, inflorescência, frutos (polpa e sementes) e raízes.
VINHO DE PATOÁ
Receita retirada do Livro “Enciclopédia da Floresta. O Alto Juruá: práticas e conhecimentos das populações
Ingredientes:
Modo de preparo:
"É preciso primeiro encontrar um cacho carregado e maduro. Depois retira-se uma envira. Um rapaz ou homem disposto passa a envira na cintura e com ela envolve o pé de patoá. Sobe então na palmeira, sempre seguro na cintura pela envira. Chegando no alto, retira o cacho, levando-o para casa nas costas. O homem então lava o patoá e faz uma pequena fogueira no terreiro, sobre a qual o patoá é cozido numa grande bacia cheia de água. Após cozido e escorrido, deve ser esfregado energicamente, como roupa muito suja. Depois d emuito esfregar, o patoá é peneirado e finalmente misturado com a farinha e o gramixó"
MOLHO DE PIMENTA COM PATOÁ (RECEITA NUKINI)
Ingredientes:
Modo de preparo:
Colhe a pimenta para molho e machuque-a. Acrescente o vinho de patoá à gosto
Nicoll Andrea Gonzalez Escobar:Nicoll é bióloga, mestre em Biologia Vegetal e doutoranda do Programa de Biologia Vegetal da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), instituição onde realizou toda a sua formação acadêmica. De nacionalidade chilena, reside no Brasil desde criança, onde criou raízes para explorar os diferentes ecossistemas do país e toda a diversidade de vida que abriga. Com foco na taxonomia vegetal, dedica-se à união dos conhecimentos tradicionais advindos das diferentes culturas do mundo com a ciência ocidental. Atualmente reside em Cruzeiro do Sul, Acre, Amazônia ocidental brasileira, onde desenvolve seu doutorado com o tema “etnotaxonomia indígena”, além de exercer diversas atividades relacionadas à pesquisa e cultivo de espécies vegetais.
Currículo Lattes